4.6.08

imagem: Bruno Cecim

Sobre o tempo
"Vêde o pé do ypê apenasmente flora. Revolucionariamente. Apenso ao pé da serra" (Belchior em Ypê)

Arqueada. Magra. Morenice de um sol sem requintes de fator de proteção. Pisa a terra com pés. Não precisa também da proteção da borracha, do couro ou do plástico. Tráz as unhas pretas nos pés como na pele. Está às voltas do fogão. Um móvel imóvel esculpido na tábua pelo barro. Buraco de onde saem labaredas. Ela ajeita o galho seco para insinuar o pedido de mais calor que o gato pequeno e rajado pede, na boca do forno.
Lá fora, o dia insiste em acontecer.

A água que espera ferver é para a fusão com o pó do café colhido no quintal, torrado e moído por ela no pilão que descansa embaixo da mesa. O café é para mim. E mora dentro de uma lata que tem cheiro de casa amanhecendo.

Na casa, os gatos ainda pequenos sobem e descem das mobílias escurecidas pela fumaça. A fumaça, como o tempo, não entende as cores vivas. Eu fumo como quem pinta um tom de morte para selar o passar do tempo. Tudo o que nos une é nossa separação. E o tempo fuma nossos momentos de lacônismo. Sobe a fumaça e anuncia que o café está pronto, preto. E que o tempo é fumaça. Tem desgraça, mas tem graça. Tem tosse, mas tem silêncio.

Ela foge dos meus olhos desviando o pretume da minha história, do mesmo modo que o menino que não suporta se demorar em mim desvia o seu brancume do cume dos meus olhos. Acho graça. A história que aconteceu sem ser, e a que não sendo, acontece.
Quando a abraço, queria ter intimidades de saber quantos são os ossos que comprimo. Quando o abraço - também.

Ela fala como quem domina um alfabeto peculiar. Aprendeu na nova terra o escudo da salvação: a língua. Passado mais de 50 anos, difícil crêr que, quando roubada para estas terras, não sabia a própria língua da nação. Hoje fala um linguajar nato. Não é mais a menina bonita de pele escura e olhos de gato que um tal senhor, pelo tal do amor, tirou da proteção de uma colônia de nativos no sul do país, para uma região pobre de peões do minério.

Ela pouco lembra e fala com um paiero que equilibra no canto da boca murcha. O mais sensível dos amigos identifica a beleza que se perdeu, atrás da fumaça. Perdeu o amor por uma picada de cobra, antes, vieram os filhos. Uma mistura que riscou um exótico em minha mãe: morenice fundida em olhos de gato.

- É bão viver assim!
Quando ela me fala acredito. Peço a benção com timidez. Ela acolhe com a mesma condição. E são tantos tios e primos que eu jamais decorarei. Aí vejo minha mãe no outro cômodo da casa que têm frestas de madeira e chão batido. Lá fora, um banheiro de casinha. Minha mãe ri e em algum lugar desponta raiva, compaixão e infância. Eu não posso entender sua incompreensão de sentimento. Ela acelera, volta, mas sou eu que continuo na cozinha. Um espaço retirado da casa, como são as casa nos sítios. É lá que ela, magra e arqueada fica. Minha mãe não consegue, por algum sentimento ativo, atingir a intimidade da cozinha. E ela, por sua vez, não consegue cobrar essa intimidade de minha mãe, nem transpor os espaços de madeira em aberto.

Há um peru gordo em cima da árvore, galinhas, galos, gatos, cachorros e porcos no quintal. Há um córrego atrás que, quando inunda, atinge a casa. Há mato e do outro lado plantação de milho, feijão, arroz, mandioca e café.
Ela vive da agricultura há anos. Com meu amigo sensível e biólogo que nos acompanha, começo a discutir a questão da crise alimentícia, da soja, da intenção de morar no mato e fazer uma produção em mandala. A irrigação, a inflação e a exportação. Ela observa sem desviar o olho da fumaça do fogão, que defuma pedaços de carne. Ela interfere e nos diz que o que vivemos é uma loucura. Ela vende o feijão dela por R$ 2,00 o quilo e nos pergunta quanto pagamos. Respondemos que quase o triplo e ela ri a soberba de um IDH falho.

Eu tento chamá-la de vó em um tom mais grave. Ela pergunta da gravidez da “menina”, minha irmã mais nova. Ela tem, junto a um mural de fotos de mulheres de maiô que meu tio conserva, nossas fotos. Pediu que minha mãe nos levasse em retrato. Disse que era para pedir ao “Divino Espírito Santo” por nós. E ela tem tantos netos que me sinto privilegiada.
A primeira vez que a vi, era uma festa do Divino. Havia festa, bandeira e pipoca no quintal. A primeira vez que minha mãe a viu, era também uma festa do Divino. E ela agradeceu.

Quando teve que dar minha mãe, com dias ainda, meu avô acabara de falecer, pela tal cobra. Já havia mais filhos e, a pessoa com a qual iria morar não queria mais uma, então teve que abandonar minha mãe.
- Sabia que o Divino iria te trazer de volta. Quando te entreguei pedi a ele para cuidar de você. Ela disse a minha mãe.
Ela nunca sai até o quintal para nos dar tchau. Ela nunca nos procurou. Nunca se sentiu no direito. Fica “faceira”, como diz, em saber que minha mãe estudou. Para ela tanto faz as cinco faculdades que minha mãe fez, o fato de ter um trabalho é o diferencial entre os filhos criados por ela, que só podem tirar o sustento da terra.
- A importante é estar estudada. Comentou meu tio, quando reclamei de cansaço, trabalho em demasia e distancia da mãe.
Os valores deles e a preocupação é o avançado da minha idade ainda na solteirice.

Antes de sair, fiquei procurando motivos que defendesse o meu parecer de que a avó que conheci tardiamente, coitada, trata-se de uma pessoa bastante pobre. Não usa sapatos, as roupas são surradas, a casa é de madeira com frestas. Tudo de material muito simples. Sem computador, sem banheiro, no muito um rádio e uma televisão. Assim como eu, sem geladeira. O fogão é à lenha. Nada lá é uma Brastemp. Sem água encanada. Sem piso no chão. Sem salário fixo... Mas não consegui.
Voltei com sacolas de arroz, feijão, mandioca, palmito, café e carne de porco conservada na própria banha, em lata. Mesmo sabendo que quase nada eu consumiria, sai imponente. Sem contar que ganhei duas esteiras de Itaboa, para colocar embaixo do meu colchão ortopédico que fica no chão, e outra para, enfim, me desfazer do velho e sem graça sofá-brega-azul e liquidação.

Enquanto a lua despontava, nos entretemos numa prosa, já que a televisão pega mal.
Ela arruma o lenço para prender os fios brancos que despontam. Cruza as pernas magras como quem apinha madeiras. Cuida do fogo que só é mantido para manter a calefação. Falo que este frio da noite e sol da tarde é bem outono, com a autonomia de quem rouba a cola alheia e sustenta o X na afirmação. Ela desfaz com a cabeça, me corrige e diz que é coisa do tempo e tempo não tem essas coisas:
- Tá começando a formar chuva e já amanhã pode cair uns pingos por cá. Já é hora de chover esses dias que eu sei. Ela disse olhando para um céu limpo.
- Sabe como vó? Perguntei meio incrédula e dizendo que a previsão da televisão era para o final da tarde.
- Sei por saber, oras, e olha que começa a pingar cedo, avisou, olhando para o céu e para o nada, como se equivalente.
E de nada adiantaria dizer que, diariamente, acompanho a previsão. Lembro que a tv ali, também não pega bem para ter acesso a estas informações. Vamos embora na estrada de poeira acompanhando a lua que, diferente de nós, sobe serra.
Na manhã seguinte. Tempo de fechar malas e as vistas. Enquanto o carro passa pelos morros da infância que insinuam traços femininos. Os pingos da chuva que deslizam no vidro no carro não me parecem assim mais tão precipitados.
*(Para quem cobra histórias/estórias)

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